«I would suggest that those readers look about themselves and observe the real place of men and women in the various contexts of our social life, and in the images, ideas, and desires that represent them and represent them to each other» (Godelier, 1996:237)
Uma das ferramentas mais eficazes para pensar o “outro” é o género. Construção e papel social, divisão do trabalho sexual, corporalidades, sexualidades, moralidades, estas categorias confinam e determinam o “lugar” que deve ser ocupado por cada agente e actor social, pensados em termos de feminino vs masculino.
As relações de género, assentes essencialmente no papel da sexualidade, são um importante e permanente factor de aquisição de poder real e simbólico em qualquer sociedade. A relação entre o sexo masculino e sexo feminino não é uma relação de dois pólos. O homem representa, ao mesmo tempo, o pólo positivo e o neutro, de tal forma que utilizamos a expressão “homem” para referir os seres humanos.
O estudo as relações de género exige a análise das transformações históricas, sociais, económicas e políticas, e permite valorizar conceitos como experiência e agência. As categorias de género atravessam as divisões de classe, de etnicidade e comunidade. Estas categorias são antes localizadas nos interstícios das práticas e ideologias individuais e institucionais (Goddart, 2000: 3). Os corpos sociais são hoje vistos à luz do que se tem assimilado ao longo da história da humanidade. Muito do que assumimos como “verdade” é um produto e um estereótipo do tempo. Como escreve Grittner, «seria presunçoso pensar que estamos imunes a ulteriores versões da história» (Grittner 1990: 189). De igual forma, muito do que se pensa hoje do corpo feminino é um produto temporal estereotipado.
Neste texto, proponho irmos sumariamente em busca das origens da ideia do corpo feminino, utilizando uma perspectiva construtivista (Jenkins 1992 e Spector e Kitsuse 1977). Como é que a mulher tem sido representada? Que lugar lhe tem sido atribuído? O que acontece quando as regras são quebradas? Quais as visões por detrás da ideia de “má mulher”? Para procurar responder a estas perguntas navegaremos pelo conceito de “prostituição”, o mais flagrante exemplo do que é uma mulher “fora das normas”. A ideia de virgem ou mãe vs prostituta continua a minar as percepções sobre a feminilidade e o seu lugar devido. Porém, não são apenas as prostitutas que sofrem o estigma associado à sua profissão. As Devadasi são disso um bom exemplo: sacerdotisas hindus casadas com o seu Deva, foram percepcionadas pelo colonizador como “prostitutas”, visto entregarem os seus corpos em relações sexuais fora do casamento tradicional. As mulheres que empregam o seu corpo, ou melhor, os seus órgãos sexuais, reprodutores tornam-se menos pessoas à luz da sociedade. Os seus corpos tornam-se imorais, impuros. Qual é a origem e o argumento que sustenta a exclusão e imoralização da mulher que utiliza o seu corpo para a sua própria sobrevivência?
Corporalidades
O corpo da mulher tem sido, ao longo dos tempos, classificado, representado, domesticado. Desde os primórdios, a feminilidade é pensada. Gimbutas (1999) sublinha que muitos dos objectos arqueológicos paleo-históricos, alguns datados de 6200-6100 A.C. (Período Neolítico) são representações da sexualidade feminina: vulva, peito e nádegas são profusamente representadas em múltiplas figuras, desde o Período Paleolítico. O papel sagrado da Grande Deusa e a fertilidade acentuavam o papel essencial da corporalidade feminina.
Figura 1 – Vênus de Willendorf
Com o estabelecimento do sistema patriarcal, e mais tarde do monoteísmo, porém, tudo começa a mudar. A feminilidade perde o seu estatuto. A sexualidade feminina desenfreada é intolerada. De facto, «as mulheres podem ser sedutoras (como no Islão), tentadoras e pecadoras (como Eva na religião cristã) ou encantadoras (como na religião judaica). Mas nas três religiões do Livro elas têm uma única vocação: dar à luz. Daí decorrendo o seu lugar na sociedade» (Ramonet, 2004:216, nossa ênfase).
A dado passo de Sexo e Carácter, a célebre obra do misógino Otto Weininger , pode ler-se o seguinte: «A mulher adapta-se em tudo ao homem como o escrínio a uma jóia, as ideias do homem tornam-se as suas ideias, os gostos dele os seus próprios gostos, cada palavra que ele pronuncia, um acontecimento, e isso tanto mais pronunciadamente quanto maior for a atracção sexual entre eles. A mulher não sente essa influência do homem como um entrave ao seu próprio desenvolvimento, não se defende dela como de uma ingerência estranha dentro de si, não procura desfazer-se dela como de algo que constitua um atentado à sua própria vida, numa palavra, não sente nenhuma relutância em ser receptiva, coisa que pelo contrário lhe agrada, esperando até que o homem a force a essa atitude. Quer a dependência, e não deseja do homem mais do que uma coisa, que ele permita enfim que ela se torne perfeitamente passiva» (Weininger, 1975:215).
O leitor dos nossos dias não deixará seguramente de chocar-se com textos como este, sobretudo quando se lembra que foram escritos já no início do século XX. Alguns invocarão a seu respeito outros textos homólogos, como o conhecido passo do Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche: «Vais ter com mulheres? Não te esqueças do chicote!».
E no entanto esquecemo-nos que estas frases, que nos parecem hoje muito incompreensíveis ou muito perversas, não fazem senão ecoar um ponto de vista que foi moeda corrente entre quase todas as culturas (incluindo a nossa cultura judaico-cristã) e se prolongou no tempo ao longo de talvez mais de dois milénios.
O próprio Weininger não deixa, a esse propósito de lembrar que, para Aristóteles, era o princípio masculino que representava na procriação o princípio formador e activo, o logos, enquanto o feminino representava apenas a passividade da matéria (Weininger, 1975: 159).
E idêntico ponto de vista pode encontrar-se num livro de Julius Evola, Rivolta contro il Mondo Moderno: «No simbolismo tradicional, o princípio sobrenatural foi concebido como “masculino”, enquanto o da natureza e do devir era tido por “feminino”. Para a cultura helénica, masculino é o “uno” – τό έν – que “existe em si mesmo”, completo e suficiente; feminina é a díade, princípio do diverso e do “diferente de si”, e por conseguinte também do desejo e do movimento. Em terminologia indú (Sâmkhya), masculino é o espírito impassível – purusha – feminino é prakrti, matriz activa de todas as formas condicionadas. A tradição extremo-oriental exprime, na dualidade cósmica do yang e do yin, conceitos equivalentes, sendo que o yang – princípio masculino – é associado à “virtude do céu” e o yin, princípio feminino, à “virtude da terra”» (Evola, 1969: 200).
De onde provêm estas construções ideológicas? Para o compreendermos, vamos recorrer a uma obra de Mircea Eliade, Tratado de História das Religiões. Nesta obra, existe um capítulo intitulado «A Terra, a Mulher e a Fecundidade», cujo argumento central é o de que «o par divino Céu-Terra é um dos motivos de fundo da mitologia universal (Eliade, 1977: 294). Sucede que, nesse par, a Terra é nossa mãe, o Céu é nosso pai. Conforme referem os Kumama, um povo agrícola da África austral, «o Céu fertiliza a Terra pela chuva, a Terra produz os cereais e as plantas» (Ibid: 296). Esta metáfora levou à constituição de uma concepção do mundo, típica das sociedades agrícolas, assente na existência de uma «solidariedade reconhecida entre a fecundidade da gleba e a da mulher» (Ibid: 311).
Assim se foi, de qualquer modo, vivendo. Até que, no último quartel do século XIX, o mundo começa a ficar “louco”. Dá-se então um duplo acontecimento: o ocidente redescobre fascinado as culturas e os povos exóticos que até aí só tinha encarado como universos potencialmente exploráveis, e atribui-lhes uma sensualidade fora do comum, feita precisamente do abandono das ilusões idealistas, segundo um esquema mental que identificava o «primitivo» e aquele conhecimento da fisicalidade que o próprio ocidente, por excessivo requinte civilizacional, estava a perder (por ex., Gauguin e o Taiti; ou D.H. Lawrence e a memória da cultura azteca, em A Serpente Emplumada); e ao mesmo tempo começa a descobrir o feminino como o ideal mimético para o qual toda a humanidade tendia.
No entanto, se a sexualidade humana muda de paradigma consoante o ambiente social e material da vida se altera, então a sexualidade é de facto, excluída uma base instintiva residual, um complexo de sentidos culturalmente determinado.
Actualmente, contudo, a maioria dos homens pró-ocidentais não coloca a mulher como um ser inferior, ou pelo menos não explicita essa pretensão. Estão, agora e na sua maioria, demasiados compenetrados com o ideal democrático, para não reconhecer todos os seres humanos como iguais. O homem pode, pois, persuadir-se de que já não existe hierarquia social entre os sexos e que, através das diferenças, a mulher é sua igual. Hoje em dia, de facto, as mulheres estão finalmente em vias de destruir o mito da feminilidade e começam afirmar a sua independência. Este processo é, contudo, de difícil concretização. Como diz Simone De Beauvoir:
«Educadas por mulheres, no seio de um mundo feminino, o seu destino normal é o casamento, que ainda as subordina praticamente ao homem; o prestígio viril está longe de ser apagado; assenta ainda em sólidas bases económicas e sociais. É, pois, necessário estudar com cuidado o destino tradicional da mulher» (Beauvoir, 1976:9).
Se o destino da mulher não é o “casamento” – entenda-se, se a mulher não restringe os seus ímpetos sexuais, se não se oferece apenas em virtude do “amor”, se não acolhe o seu papel de esposa, mãe, trabalhadora e gestora de lar -, enfim, se ela não ocupa o seu “lugar” normal na sociedade, torna-se um elemento estranho, exterior ao normativo e exige nomeação binária: as mulheres que se regem pelas regras sociais são “mulheres de bem”; às outras atribui-se o nome de puta. Nesta categoria, colocam-se frequentemente as mulheres que utilizam a sua corporalidade para desenvolver as suas actividades profissionais, mas também religiosas e, evidentemente, as prostitutas ou trabalhadoras do sexo.
Prostituição
A prostituição, “a mais velha profissão do mundo”, tem sido ao longo dos tempos descrita e narrada no ocidente como «um vício da ordem social que está ligado a uma necessidade primitiva do homem» (Cruz, 1984: 53). Zola, Tolstoi, Dostoyewsky são apenas alguns dos autores que matizaram com traços dramáticos a personagem frequentemente ousada dos meios camponeses que se dirige para a vida urbana e é empurrada pela miséria para a prostituição.
Figura 2 – O Fado
Em Da Prostituição na Cidade de Lisboa (1984 [1941]), Francisco Cruz esclarece que a palavra “prostituta” é o particípio passivo de prostitutas do verbo prostituo, que significa «prostrar, entregar, pôr publicamente de venda (…), mulher pública posta a ganho; é segundo as próprias expressões e linguagem da nossa antiga legislação no tempo do Sr. D. Manuel, uma mulher que com o corpo ganha dinheiro publicamente, não se negando aos que a ela quiserem ir fora da mancebia» (Cruz, 1984: 49). Neste curioso texto, o autor refere que «a prostituição toca nas primeiras idades dos povos do Globo. Pelos livros sagrados coligimos que existiam prostitutas no tempo de Moisés e que elas se entregavam a todo o género de deboche para satisfazerem as suas desordenadas e impudicas paixões ou com o fim dos lucros» (Ibid. 53). E não esqueçamos que a Bíblia afirma que não deve haver «nem prostitutas, nem libertinos entre os filhos de Israel» (Deutoron, cap.23, v.17).
Todavia, a história da prostituição apresenta extraordinárias contradições. Por exemplo, na Antiguidade, concretamente na Mesopotâmia do II milénio A.C., a prostituta era representada binariamente como puta/sacerdotisa, puta/deusa. A Grande Deusa Innana (que mais tarde se virá a chamar Ishtar) era ela própria identificada como “prostituta”. Porém, tal como indica o Épico de Gilgamesh, estas “prostitutas” antigas estavam longe de sofrer o estigma sentido pelas suas homólogas contemporânea (Shankar, 1990: 30-32; Scrambler, 1997: xi e 3).
Noutros locais, igualmente nos antigos tempos, os Japoneses tinham um culto à Deusa da Prostituição, em honra da qual estabeleceram várias festas públicas. Já na «Índia e no Egipto a religião e a política divinizaram os prazeres» (Cruz, 1984: 54). A prostituição religiosa encontrava-se amplamente disseminada em locais tão distantes como a Ásia ocidental, o extremo-oriente, a América central, a África ocidental, na Síria, na Fenícia, na Arábia, no Egipto (Shankar, 1990: 28).
Na Antiga Grécia, atribui-se o estabelecimento regular dos chamados “lugares de deboche” a Solon, «o primeiro que pelas leis favoreceu o Tráfico que faziam dos seus encontros as voluptuosas atenienses» (Cruz, 1984: 55). A estas cortesãs atenienses não se permitia a entrada na cidade e nos templos. Antes, os espaços onde se tolerava a sua presença e ocupação eram «as avenidas do cerâmico e a Arcada do Longo Pórtico, [onde] se ofereciam às primeiras vistas dos que chegavam ao Pireu, ou aí se embarcavam» (Cruz, 1984: 57). As cortesãs eram na sua maioria escravas cujos senhores «traficavam os seus encontros: era então toda a sua arte empregada em seduzir algum rico que as comprasse e lhes desse liberdade» (Ibid: 57).
Na Antiga Roma também se encontrava o “flagelo da prostituição”. Esta curiosa expressão é de Cruz, que salienta que «as leis de escravidão, e aquelas que então regulavam a união dos sexos, muito contribuíram para o incremento da prostituição, a ponto que o deboche público não chocava os costumes, antes deles fazia parte» (Ibid: 60). As mulheres que “exerciam o seu infame comércio” encontravam-se nos bairros mais retirados da cidade, «próximo dos muros, ao pé do Circo, do estádio e dos Teatros» (Ibid: 61).
Este pequeno apontamento sobre a história da prostituição revela que nalguns locais a actividade prostitutiva era constituinte da acção do sagrado e da religião, sendo uma prática de devoção e uma homenagem à divindade. Da selecção de visões aqui apresentada , permitam-nos destacar a obscuridade e a perda de valor e visibilidade que a “mulher pública posta a ganho” sofre com a aproximação a território europeu. Elas são afastadas dos templos e dos centros das cidades. Já não surgem interligadas com a divindade ou o sagrado. Pelo contrário, antes mesmo do Cristianismo se ter difundido, a visão da prostituta estigmatizada já estava alicerçada nas mentalidades dos actores sociais. É por isso que ainda hoje as mulheres que trabalham na prostituição são vistas como “más mulheres”, que infringem as normas aceitáveis de feminilidade e são por isso alienadas dos seus direitos.
Porém, o debate contemporâneo sobre esta actividade começa a dar alguns passos em frente. Alguns países aceitam a prostituição como uma profissão legítima. A maioria porém não a regula nem criminaliza. A prostituição não é ilegal, mas na sociedade contemporânea é percepcionada como um crime contra a moral. É que «em quase todos os povos do mundo é a prostituição um negócio de interesse» (Cruz, 1984: 54). A prostituta, todavia, encontra-se excluída da sociedade. É vista como moralmente suspeita e tornada invisível (Scrambler, 1997: 7). O estigma da prostituição afecta todas as mulheres que com o seu corpo se dedicam a uma actividade profissional ou religiosa. Atendamos agora ao papel das Devadasi neste contexto.
Devadasi
As Devadasi ou bailadeiras, dançarinas ligadas aos templos hindus na Índia, padecem do mesmo estigma, ainda que a sua prostituição seja categorizada como religiosa. A devadasi dança e canta entusiasticamente nas cerimónias religiosas. Para além disso, faz parte das suas funções a entrega do seu corpo à divindade a que se que devota, à casta Brahman e ao “seu senhor” ou “patrono”, e actualmente aos homens ricos (Shankar, 1990: 16), a troco de uma mais-valia em dinheiro (Shankar, 1990: 16). Perez, todavia, sublinha que as bailadeiras não se envolvem com homens que não sejam Brahamns hindus, ainda que existam dados que comprovam que Brahmans católicos também se envolviam com devadasi. A conjugalidade entre uma devadasi e um brahman termina apenas quando ele morre e a sua família aceita esta relação, contrariando a concepção hindu de adultério, a aparentemente esta família se encontra imune (Perez, 2005: 140).
Figura 3 – Imagem do filme Sringaram - Dance of Love
A dança e a prostituição têm sido percepcionadas como inseparáveis na Índia, desde os primórdios (Shankar, 1990: 42). As servas da divindade não estão autorizadas a casar com qualquer homem mortal. A sua dedicação ao templo é considerada um casamento com a própria divindade (Perez, 2005: 132). São as únicas mulheres que tomam parte das festividades e rituais da divindade como especialistas rituais ou sacerdotisas (Shankar, 1990: 16). No passado, estas mulheres eram ainda as únicas que tinham o privilégio de aprender a ler, dançar e cantar.
Este culto encontra-se ainda hoje disseminado por toda a Índia, mas existem provas que corroboram a origem da sua existência entre os séculos X e XI da nossa era (Ibid:111). Com o crescimento da urbanização e da prostituição comercial, este culto permanece hoje popular. Depois da cerimónia de iniciação, as mulheres migram para cidades próximas ou remotas para praticar a actividade prostitutiva (Ibid: 17). É esta a forma de passar do culto para a prostituição comercial, ainda que as mulheres que se identificam como devadasi sejam regidas por regras que não envolvem aquela prostituição e retenham um estatuto mais alto que as suas congéneres fora do templo. As devadasi encontram-se ao serviço do deus. Não sentem por isso qualquer relutância ou estigma social. Shankar não deixa contudo de chamar a atenção para o papel da pobreza para o aumento do “clã devadasi” (Ibid: 17). O que a devadasi entrega à divindade é o que de mais valioso uma mulher pode oferecer: a sua castidade.
«Under the male deity the sacred prostitution plays the part of a concubine while under the female deity, she plays the role of stand-by or substitute, always ready to symbolize by her action the purpose of great fertility and mother goddess» (Shankar, 1990: 32).
O domínio colonizador, britânico e português na Índia, ainda que advogasse a moralidade vitoriana, sustentou indirectamente este culto. Com o estabelecimento de bases militares pelo território, era necessário fundar verdadeiras “colónias de prostitutas” (Ibid: 122). Os autores coloniais essencializaram constantemente as dançarinas dos templos como “prostitutas”, uma categoria opaca no discurso legal anglo-indiano (Parker, 1998: 559).
No inicio do século XIX, contudo, as devadasi gozavam de um prestígio considerável na sociedade hindu “tradicional”. Todavia, com o intuito oficial de “salvar” estas mulheres, e de as recuperar para o casamento convencional, o culto devadasi torna-se crime. Para tal, os tribunais anglo-indianos utilizaram o conceito de prostituição na sua expressão mais lata - a ocorrência de sexo, fora do casamento normal. Os colonizadores não entenderam que o culto era mais que simples troca comercial de sexo. As funções da devadasi nos ritos sagrados não podem ser reduzidas às de uma prostituta (Parker, 1998: 598). O sexo realizado por uma serva de um deus é sagrado.
Porém, novamente, quando uma mulher faz uso do seu corpo para desenvolver as suas actividades, profissionais ou religiosas, é rotulada de puta, uma pessoa com menos direitos, visto renegar as suas obrigações de esposa (convencional) e de mãe. Torna-se por isso uma menor mulher, uma pessoa imoral, e portanto invisível.
Corpos (I)Morais
Um dos mais importantes utensílios que permitem a manipulação das visões políticas sobre o “lugar de cada um” é o género. As assimetrias deste conceito permitem representar metaforicamente o “eu” e o outro, a mulher e o homem, a Europa e outros locais. É uma forma de reificar as diferenças entre culturas (Perez, 2005: 129-130) e entre pessoas. O género é simultaneamente uma interpretação das diferenças sexuais e uma forma de exercer poder sobre os corpos (Castelli, 2001: 3).
Neste contexto, o colonialismo, como no caso da Índia britânica ou portuguesa, construiu-se com base em imagens sobre as mulheres, e não das mulheres (Perez, 2005: 130). Porém, atendamos, o lugar da mulher, em qualquer sociedade está precisamente cimentada em imagens que lhe foram impostas ao longo dos tempos. As imagens orientais, nomeadamente muçulmanas, contudo, têm alimentado a imaginação ocidental: o harém, o véu, a poligamia funcionaram como sinónimos de dominação, de opressão feminina e de erotismo (Ibid: 131). Perez apresenta um excerto de As Bailadeiras de Propércia Correia Afonso que, na opinião da autora, contém o discurso representativo da moralidade católica colonizadora: «mulheres que, habitando geralmente perto dos pagodes, têm a profissão de dança e exercem a prostituição como deveres inerentes à sua casta [...]. Vítima ela própria do sistema social e religioso em que nasceu, a sua existência é uma ameaça constante para a moral da sociedade, que não só permite a sua existência como a condena irremissivelmente ao seu triste modo de vida (Perez, 2005: 136; nossa ênfase). A moralidade é inegável na construção do outro.
Os aspectos doutrinais formadores de qualquer comunidade incluem dogmas religiosos, morais, sociais, que governam o que cada sociedade pensa de si e dos outros. Valores, atitudes e ideologias de uma dada sociedade estão literalmente agregados no corpo biológico (Perez, 2009: 31). Os próprios corpos revelam os paradigmas das estruturas sociais. Mas também são um lugar de luta política. O poder de regular o que os corpos – as pessoas enfim - têm liberdade para fazer ou não tem resultado na exclusão de corpos estranhos, fora das normas morais. É o caso das mulheres que quebram as regras, que entregam o seu corpo em nome de uma profissão, de uma actividade, de uma religião ou culto. Os valores que regulam o corpo da mulher continuam a estar poluídos com os conceitos de submissão e controlo da sua sexualidade e agressividade (Das, 1987: 57).
Costuma dizer-se que o verdadeiro lugar da sexualidade é o cérebro, querendo com isso significar-se que é aí, nesse lugar por excelência de todas as fantasias, que o desejo em última instância se acolhe e se reinventa. Mas talvez isto não seja na verdade exacto. Porque o cérebro e as suas fantasias não existem em estado de absoluta liberdade. Nesta como noutras matérias a nossa capacidade de imaginar está dependente das fantasias geradas pela sociedade no seu todo. É por isso que talvez possa considerar-se que a sexualidade é globalmente cultural.
Porém, a mulher erótica que se permite entrar nessas fantasias globalmente culturais, é excluída e imoralizada apenas porque a sua sobrevivência requer a utilização corporal – seja no caso da prostituição comercial ou da prostituição religiosa.
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*Ensaio apresentado na cadeira de PDA: Abordagens Regionais em Antropologia (ISCTE, 2009)