Reza a Bíblia que foram os filhos de Noé que povoaram toda a terra. Depois do Dilúvio, Noé instala-se em terra firme com os seus três filhos Sem, Cam e Jafeth. Depois de plantar uma vinha e consequentemente se embebedar, adormece no interior da sua tenda, onde é encontrado por Cam. Este, vendo a nudez do pai, apressa-se a ir contar aos irmãos. Sem e Jafeth têm a cortesia de cobrir o pai. Quando acorda, Noé descobre o que o seu filho mais novo fez e amaldiçoa-o: que todos os descendentes de Cam sejam servos, escravos. Cam é o “pai” de Cannan (Génesis 9, 10: 25). Assim nasce a escravatura. Com esta pequena história bíblica, afirma Goldenberg, justifica-se a escravatura negra por mais de mil anos (Goldenberg, 2003:1)1.
A escravatura tem acompanhado a história da humanidade desde os primórdios, se aceitarmos como verdade testemunhos da Ilíada de Homero ou a própria Bíblia. A escravatura indígena é inegável. Basta lembrar os relatos do trabalho escravo colonial e “o horror, o horror” de Joseph Conrad. A escravatura acompanha-nos há demasiado tempo, foi absorvida pelo nosso código genético imaginário e moral. Hoje ensinam-nos o propósito da eliminação da dialéctica explorados/exploradores, mas nunca como hoje essa dicotomia esteve tão presente. A reinvenção da ideia de tráfico, assistida pelo conceito de seres humanos e assente na intenção ética de igualdade, pretende que hoje ninguém deve ser comprado ou vendido, que nenhum ser humano é mercadoria, que ninguém pode ser explorado. O que não deixa de ser curioso – deverei ter a ousadia de dizer mesmo hipócrita? – quando vivemos plena crise económica, financeira e social, global.
Hoje absolvemo-nos do passado com a criação de leis igualitárias que focam a supressão das diferenças entre pessoas e a abolição de actos transformados em crimes, como é o caso do tráfico de seres humanos (TSH) – nada mais, nada menos, que a reinvenção actual do conceito de escravatura.
Permitam-me propor-vos uma breve viagem ao mundo conceptual do tráfico de seres humanos, onde a interpretação deste flagelo é feita em grande medida em função do mundo da prostituição ou do trabalho sexual, das representações de género, sexo e imigração, no que toca ao imaginário social. A pergunta principal deste texto é muito simplesmente: o que é o tráfico de seres humanos?
Alvim, Filipa, 2015, "O Erro de Cam: o Tráfico de Seres Humanos da origem aos dias que correm" in BUALA:
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