A prostituição é um mal da sociedade. Sempre foi. ... Será mesmo?
Em
Da Prostituição na Cidade de Lisboa[1]
(1984 [1941]), Francisco Cruz esclarece que a palavra “prostituta” é o
particípio passivo de prostitutas do
verbo prostituo, que significa:
Prostrar, entregar, pôr publicamente de venda,
mulher pública posta a ganho; é segundo as próprias expressões e linguagem da
nossa antiga legislação no tempo do Sr. D. Manuel, uma mulher que com o corpo ganha dinheiro
publicamente, não se negando aos que a ela quiserem ir fora da mancebia (Cruz,
1984: 49).
Neste
curioso texto, o autor refere que “a prostituição toca nas primeiras idades dos
povos do Globo. Pelos livros sagrados coligimos que existiam prostitutas no
tempo de Moisés e que elas se entregavam a todo o género de deboche para
satisfazerem as suas desordenadas e impudicas paixões ou com o fim dos lucros”
(Idem: 53; Pessoa, 2006). E não esqueçamos que a Bíblia afirma que não deve
haver “nem prostitutas, nem libertinos entre os filhos de Israel”[2] (Deuteronómico, 23: 17).
Todavia,
a história da prostituição apresenta extraordinárias contradições (Scrambler,
1997; Ditmore, 2006; Pessoa, 2006). Por exemplo, na Antiguidade, na Mesopotâmia
do II milénio a.C., a prostituta era representada binariamente como
puta/sacerdotisa e puta/deusa.
A Grande Deusa Innana, senhora do amor, da
fertilidade e da guerra, a mais importante deusa do panteão sumério (que mais
tarde se virá a chamar Ishtar) era ela própria identificada como
“prostituta”(Qualls-Corbett, 1988; Harris, 1991; Busenbark, 1997; Meador, 2000;
Ryang, 2006).
Na atual Israel, prestava-se culto a Astarte, deusa do amor, da
paixão, do sexo e da fertilidade. Em Makor, a 2202 a.C., os rituais religiosos
de culto a Astarte envolviam a escolha de um homem para se deitar com a sacerdotisa
da deusa, a personificação da própria deusa, no seu templo, durante sete dias e
sete noites[3]
(Qualls-Corbett, 1988: 12; Pessoa, 2006). Porém, tal como indica o Épico de
Gilgamesh, estas “prostitutas” antigas estavam longe de sofrer o estigma
sentido pelas suas homólogas contemporâneas (Qualls-Corbett, 1988: 37; Shankar,
1990: 30-32; Scrambler, 1997: xi).
Cruz
afirma que, mais a oriente, também na Antiguidade, os japoneses prestavam um
culto à Deusa da prostituição, em honra da qual estabeleceram várias festas
públicas (Cruz, 1984: 54). Ryang esclarece que decorriam vários festivais
dedicados ao panteão politeísta japonês, que envolviam o chamado “sexo sagrado”
no interior dos santuários, ou em seu redor, quer as pessoas se conhecessem,
quer não, em nome da fertilidade e da virilidade (Ryang, 2006: 11).
Já na
“Índia e no Egipto a religião e a política divinizaram os prazeres” (Cruz,
1984: 54). A prostituição religiosa encontrava-se, afirma, amplamente disseminada em
locais tão distantes como a Ásia ocidental, o extremo-oriente, a América
central, a África ocidental, na Síria, na Fenícia, na Arábia, no Egipto
(Qualls-Corbett, 1988: 12; Shankar, 1990: 28; Ryang, 2006: 10; Pessoa, 2006:
17).
Na
Antiga Grécia, atribui-se o estabelecimento regular dos chamados “lugares de
deboche” a Solon, “o primeiro que pelas leis favoreceu o tráfico que faziam dos
seus encontros as voluptuosas atenienses” (Cruz, 1984: 55; Qualls-Corbett,
1988: 38; Ditmore, 2006: xxvi). A estas cortesãs atenienses não se permitia a
entrada na cidade e nos templos. Antes, os espaços onde se tolerava a sua
presença e ocupação eram “as avenidas do cerâmico
e a Arcada do Longo Pórtico, [onde]
se ofereciam às primeiras vistas dos que chegavam ao Pireu, ou aí se
embarcavam” (Cruz, 1984: 57). As cortesãs eram, na sua maioria, escravas cujos
senhores “traficavam os seus encontros: era então toda a sua arte empregada em
seduzir algum rico que as comprasse e lhes desse liberdade” (Idem: 57).
O
conceito de tráfico tem sido vinculado à prostituição, como de resto se nota na
linguagem utilizada. Mais à frente na História, Goody afirma que, no século X,
o Magrebe era principalmente notável pelo seu mercado de escravos negros e
brancos, estes últimos originários do “bairro Andaluz”. Os preços mais altos
seriam praticados sobre os escravos brancos e, muito particularmente, sobre as
escravas brancas, “sexualmente atraentes” (Goody, 1980: 29). O sexo – ligado ou
não à reprodução e aos mercados – sempre foi e é a força motriz da existência
humana.
Na
Roma antiga também se encontrava o “flagelo da prostituição”. Esta expressão é
de Cruz (1984 [1941]), que salienta que “as leis de escravidão, e aquelas que
então regulavam a união dos sexos, muito contribuíram para o incremento da
prostituição, a ponto que o deboche público não chocava os costumes, antes
deles fazia parte” (Idem: 60). As mulheres que “exerciam o seu infame comércio”
encontravam-se nos bairros mais retirados da cidade, “próximo dos muros, ao pé
do Circo, do estádio e dos Teatros” (Idem: 61).
Contrariando o que acaba de ser
dito, porém, Lopes (2006) e Roberts (1992) afirmam que, no Império Romano, as
prostitutas orgulhavam-se de ser mais livres, mais cultas e mais belas entre as
mulheres, à semelhança das “heteras”, “amantes” ou “prostitutas de elite” da
Grécia antiga, o equivalente às acompanhantes de luxo de hoje (Coelho, 2009).
A história da
prostituição revela que nalguns locais a actividade prostitutiva era
constituinte da acção do sagrado e da religião, sendo uma prática de devoção e
uma homenagem à divindade.
Porém, com o passar dos tempos, destaca-se a
obscuridade, a perda de valor e a visibilidade que a “mulher pública posta a
ganho” passa a sofrer com a aproximação à contemporaneidade.
Elas são afastadas
dos templos e dos centros das cidades. Deixam de surgir interligadas com o
divino ou o sagrado. Antes mesmo do Cristianismo se ter difundido, a visão da
prostituta estigmatizada já estava alicerçada nas mentalidades dos atores
sociais, muito por via dos sentimentos entretanto tornados populares de culpa.
Não esqueçamos o dualismo entre “alma”
perfeita e “corpo” impuro, existente já no pensamento grego, que é prolongado no
pensamento cristão, no dualismo entre o “espírito” e a “carne” (Ferreira, 2006:
30; Synnott,
1993: 9). Com a difusão e instauração do cristianismo,
nomeadamente a ocidente, os valores da virgindade e do controlo dos ímpetos
carnais torna-se uma máxima.
Germaine Greer é uma das autoras que sublinha a
importância atribuída à castidade com o surgimento do cristianismo, sendo que
os fiéis deverão seguir o exemplo divino de Cristo e de sua mãe. Afinal, o deus
católico apraz-se com a abstinência sexual e a lealdade marital. No seu livro Sex and Destiny (1984), Greer aponta
estes mesmos argumentos para destacar a importância atribuída à castidade que
é, na verdade, uma forma social de controlo da sexualidade (feminina) e da natalidade (Greer, 1984: 80-81).
Porque é o espaço onde vivem latentes as tentações
carnais e o pecado, o corpo é um “lugar a controlar, a
disciplinar, a conter” (Ferreira, 2006: 29). A inocência e a pureza moral são
apresentadas como os mais altos valores da doutrina cristã. É por isso que
ainda hoje as mulheres que trabalham na prostituição são consideradas “más
mulheres”, que transgridem as normas de feminilidade e são, portanto, alienadas dos seus
direitos.
Se nem sempre a prostituta foi percepcionada como má mulher, porque é que não será possível hoje vê-la simplesmente como uma pessoa, nem sagrada, nem profana?
[1] Na introdução deste livro, nas palavras de Joaquim
Pais de Brito, este é “o primeiro estudo a sério sobre a prostituição em
Portugal” (Cruz, 1984: 17-18).
[2] A citação é de Cruz, 1984. A transcrição
exata do versículo mencionado é: “ Não haverá rameira de entre as filhas de
Israel; nem haverá sodomita de entre os filhos de Israel”.
[3] Mais a oriente, no Japão, Ryang menciona a existência
de festas sagradas dedicadas ao panteão, que também envolviam encontros sexuais
que duravam sete dias e sete noites, como as cerimónias de kagai, okomori, zakone
(Ryang, 2006: 11-14).
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