quarta-feira, 15 de maio de 2013

Brevíssima - e nem por isso muito crítica - história sobre a prostituição


A prostituição é um mal da sociedade. Sempre foi. ... Será mesmo?

Em Da Prostituição na Cidade de Lisboa[1] (1984 [1941]), Francisco Cruz esclarece que a palavra “prostituta” é o particípio passivo de prostitutas do verbo prostituo, que significa:

 Prostrar, entregar, pôr publicamente de venda, mulher pública posta a ganho; é segundo as próprias expressões e linguagem da nossa antiga legislação no tempo do Sr. D. Manuel, uma mulher que com o corpo ganha dinheiro publicamente, não se negando aos que a ela quiserem ir fora da mancebia (Cruz, 1984: 49).

Neste curioso texto, o autor refere que “a prostituição toca nas primeiras idades dos povos do Globo. Pelos livros sagrados coligimos que existiam prostitutas no tempo de Moisés e que elas se entregavam a todo o género de deboche para satisfazerem as suas desordenadas e impudicas paixões ou com o fim dos lucros” (Idem: 53; Pessoa, 2006). E não esqueçamos que a Bíblia afirma que não deve haver “nem prostitutas, nem libertinos entre os filhos de Israel”[2] (Deuteronómico, 23: 17).

Todavia, a história da prostituição apresenta extraordinárias contradições (Scrambler, 1997; Ditmore, 2006; Pessoa, 2006). Por exemplo, na Antiguidade, na Mesopotâmia do II milénio a.C., a prostituta era representada binariamente como puta/sacerdotisa e puta/deusa. 

A Grande Deusa Innana, senhora do amor, da fertilidade e da guerra, a mais importante deusa do panteão sumério (que mais tarde se virá a chamar Ishtar) era ela própria identificada como “prostituta”(Qualls-Corbett, 1988; Harris, 1991; Busenbark, 1997; Meador, 2000; Ryang, 2006). 

Na atual Israel, prestava-se culto a Astarte, deusa do amor, da paixão, do sexo e da fertilidade. Em Makor, a 2202 a.C., os rituais religiosos de culto a Astarte envolviam a escolha de um homem para se deitar com a sacerdotisa da deusa, a personificação da própria deusa, no seu templo, durante sete dias e sete noites[3] (Qualls-Corbett, 1988: 12; Pessoa, 2006). Porém, tal como indica o Épico de Gilgamesh, estas “prostitutas” antigas estavam longe de sofrer o estigma sentido pelas suas homólogas contemporâneas (Qualls-Corbett, 1988: 37; Shankar, 1990: 30-32; Scrambler, 1997: xi).

Cruz afirma que, mais a oriente, também na Antiguidade, os japoneses prestavam um culto à Deusa da prostituição, em honra da qual estabeleceram várias festas públicas (Cruz, 1984: 54). Ryang esclarece que decorriam vários festivais dedicados ao panteão politeísta japonês, que envolviam o chamado “sexo sagrado” no interior dos santuários, ou em seu redor, quer as pessoas se conhecessem, quer não, em nome da fertilidade e da virilidade (Ryang, 2006: 11). 

Já na “Índia e no Egipto a religião e a política divinizaram os prazeres” (Cruz, 1984: 54). A prostituição religiosa encontrava-se, afirma, amplamente disseminada em locais tão distantes como a Ásia ocidental, o extremo-oriente, a América central, a África ocidental, na Síria, na Fenícia, na Arábia, no Egipto (Qualls-Corbett, 1988: 12; Shankar, 1990: 28; Ryang, 2006: 10; Pessoa, 2006: 17). 

Na Antiga Grécia, atribui-se o estabelecimento regular dos chamados “lugares de deboche” a Solon, “o primeiro que pelas leis favoreceu o tráfico que faziam dos seus encontros as voluptuosas atenienses” (Cruz, 1984: 55; Qualls-Corbett, 1988: 38; Ditmore, 2006: xxvi). A estas cortesãs atenienses não se permitia a entrada na cidade e nos templos. Antes, os espaços onde se tolerava a sua presença e ocupação eram “as avenidas do cerâmico e a Arcada do Longo Pórtico, [onde] se ofereciam às primeiras vistas dos que chegavam ao Pireu, ou aí se embarcavam” (Cruz, 1984: 57). As cortesãs eram, na sua maioria, escravas cujos senhores “traficavam os seus encontros: era então toda a sua arte empregada em seduzir algum rico que as comprasse e lhes desse liberdade” (Idem: 57).

O conceito de tráfico tem sido vinculado à prostituição, como de resto se nota na linguagem utilizada. Mais à frente na História, Goody afirma que, no século X, o Magrebe era principalmente notável pelo seu mercado de escravos negros e brancos, estes últimos originários do “bairro Andaluz”. Os preços mais altos seriam praticados sobre os escravos brancos e, muito particularmente, sobre as escravas brancas, “sexualmente atraentes” (Goody, 1980: 29). O sexo – ligado ou não à reprodução e aos mercados – sempre foi e é a força motriz da existência humana.

Na Roma antiga também se encontrava o “flagelo da prostituição”. Esta expressão é de Cruz (1984 [1941]), que salienta que “as leis de escravidão, e aquelas que então regulavam a união dos sexos, muito contribuíram para o incremento da prostituição, a ponto que o deboche público não chocava os costumes, antes deles fazia parte” (Idem: 60). As mulheres que “exerciam o seu infame comércio” encontravam-se nos bairros mais retirados da cidade, “próximo dos muros, ao pé do Circo, do estádio e dos Teatros” (Idem: 61). 
Contrariando o que acaba de ser dito, porém, Lopes (2006) e Roberts (1992) afirmam que, no Império Romano, as prostitutas orgulhavam-se de ser mais livres, mais cultas e mais belas entre as mulheres, à semelhança das “heteras”, “amantes” ou “prostitutas de elite” da Grécia antiga, o equivalente às acompanhantes de luxo de hoje (Coelho, 2009).

A história da prostituição revela que nalguns locais a actividade prostitutiva era constituinte da acção do sagrado e da religião, sendo uma prática de devoção e uma homenagem à divindade. 
Porém, com o passar dos tempos, destaca-se a obscuridade, a perda de valor e a visibilidade que a “mulher pública posta a ganho” passa a sofrer com a aproximação à contemporaneidade. 
Elas são afastadas dos templos e dos centros das cidades. Deixam de surgir interligadas com o divino ou o sagrado. Antes mesmo do Cristianismo se ter difundido, a visão da prostituta estigmatizada já estava alicerçada nas mentalidades dos atores sociais, muito por via dos sentimentos entretanto tornados populares de culpa. 

Não esqueçamos o dualismo entre “alma” perfeita e “corpo” impuro, existente já no pensamento grego, que é prolongado no pensamento cristão, no dualismo entre o “espírito” e a “carne” (Ferreira, 2006: 30; Synnott, 1993: 9). Com a difusão e instauração do cristianismo, nomeadamente a ocidente, os valores da virgindade e do controlo dos ímpetos carnais torna-se uma máxima. 

Germaine Greer é uma das autoras que sublinha a importância atribuída à castidade com o surgimento do cristianismo, sendo que os fiéis deverão seguir o exemplo divino de Cristo e de sua mãe. Afinal, o deus católico apraz-se com a abstinência sexual e a lealdade marital. No seu livro Sex and Destiny (1984), Greer aponta estes mesmos argumentos para destacar a importância atribuída à castidade que é, na verdade, uma forma social de controlo da sexualidade (feminina) e da natalidade (Greer, 1984: 80-81). Porque é o espaço onde vivem latentes as tentações carnais e o pecado, o corpo é um “lugar a controlar, a disciplinar, a conter” (Ferreira, 2006: 29). A inocência e a pureza moral são apresentadas como os mais altos valores da doutrina cristã. É por isso que ainda hoje as mulheres que trabalham na prostituição são consideradas “más mulheres”, que transgridem as normas de feminilidade e são, portanto, alienadas dos seus direitos.


Se nem sempre a prostituta foi percepcionada como má mulher, porque é que não será possível hoje vê-la simplesmente como uma pessoa, nem sagrada, nem profana?





[1] Na introdução deste livro, nas palavras de Joaquim Pais de Brito, este é “o primeiro estudo a sério sobre a prostituição em Portugal” (Cruz, 1984: 17-18).
[2] A citação é de Cruz, 1984. A transcrição exata do versículo mencionado é: “ Não haverá rameira de entre as filhas de Israel; nem haverá sodomita de entre os filhos de Israel”.
[3] Mais a oriente, no Japão, Ryang menciona a existência de festas sagradas dedicadas ao panteão, que também envolviam encontros sexuais que duravam sete dias e sete noites, como as cerimónias de kagai, okomori, zakone  (Ryang, 2006: 11-14).


Bibliografia:

Busenbark, Ernest, 1997, Symbols, Sex and the Stars, s.l., The Book Tree.
Coelho, Bernardo, 2009, Corpo Adentro, Lisboa: Difel.
Cruz, Francisco I. S., 1984 (1941), Da Prostituição na Cidade de Lisboa, Lisboa: Publicações Dom Quixote.
Ditmore, Melissa H. (ed.), 2006, Encyclopedia of Prostitution and Sex Work, Volumes 1 & 2, Wesport e Londres: Greewood Press.
Ferreira, Vítor S., 2006, Marcas de Demarcam: Corpo, Tatuagem e Body Piercing em Contextos Juvenis, Tese de Doutoramento, Lisboa: ISCTE.
Goody, Jack, 1980, “Slavery in Time and Space” in Watson, James L. (ed.), 1980, Asian and African Systems of Slavery, Berkeley: Basil Blackwell, pp.16-42.
Greer, Germaine, 1984, Sex and Destiny: The Politics of Human Fertility, Londres: Martin Secker & Warburg Limited.
Harris, Rivkah, 1991, “Inanna-Ishtar as Paradox and a Coincidence of Opposites”, History of Religions, Volume 30, Nº 3, pp. 261-278.
Lopes, Ana, 2006, Trabalhadores do Sexo Uni-vos! Organização Laboral na Indústria do Sexo, Lisboa: Publicações Dom Quixote.
Meador, Betty D.S., 2000, Inanna, Lady of the Largest Heart. Poems of the Sumerian High Priestess Enheduanna, Austin: University of Texas Press.
Pessoa, Alfredo A., 2006 (1887), Os Bons Velhos Tempos da Prostituição em Portugal, Lisboa: Antígona.
Qualls-Corbett, Nancy, 1988, The Sacred Prostitute: Eternal Aspect of the Feminine, Toronto: Toronto University Press.
Roberts, Nickie, 1992, Whores in History. Prostitution in Western Society, Londres: Harper Collins.
Ryang, Sonia, 2006, Love in Modern Japan: Its estrangement from self, sex and society, Oxon: Routledge.
Scrambler, Graham e Scrambler, Annette, 1997, Rethinking Prostitution: Purchaising sex in the 1990s, Nova Iorque: Routledge. 
Shankar, Jogan, 1990, Devadasi cult - A sociological analysis, Nova Deli: Ashish Publishing House.
Synnott, Anthony, 1993, The Body Social. Symbolism, Self and Society, Londres e Nova Iorque: Routledge.



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