segunda-feira, 5 de abril de 2010

Uma tarde no Intendente

Sábado. Lisboa. Intendente. Meio da tarde.
Mais homens que mulheres. Uns velhotes residentes sentados num banquinho a conversar. Muito traficante de droga. Uma dúzia de trabalhadoras do sexo. Eu de caderno e lápis em punho ali a passear no Largo e a entrevistar as trabalhadoras do sexo (entrevistas rápidas, que tempo é dinheiro...embora a rua esteja "muito fraca").
Metade das prostitutas ali presentes são pretas novas, todas juntas, algumas ligeiramente afastadas, com quem se fala em inglês - as primeiras que abordo.

Uma delas é a Jennifer, do Ghana. Tem 27 anos. Está aqui no Intendente há 4 meses e trabalha nesta área - entenda-se no trabalho do sexo - em full time. Não tem qualquer outro emprego. O que a levou à prostituição?
- The money. I need to eat.
- How did it happen?
- I was begging for money and a person told me to come here.
- Who was he?
- No - e desvia a cara, olha para o lado. Não quer (não pode?) responder. Continuemos.
- How long are you in Portugal?
- 4 months.
- Ah so you came here at the same time.
- yes. no. i dont know - novo desvio de olhares.
- Why did you choose Portugal? - a esta nem sequer recebo um não. Só silêncio.Enveredemos por outro caminho.
- How much do you ask to your clients?
- 20, 15 euros.
- For what?
Nova nega. Esta não percebo muito bem.
- Do you think that prostitution should be legalized, i mean, treated like any other job, working in a shop or in domestic service, or...
- No. I dont like it. Nobody likes it, to be a prostitute - ao lado surge um homem, um amigo delas, que se junta a nós. Estamos ali à porta da loja de esquina, elas duas, agora 3, contando com ele, estão encostado de costa para a porta. Eu estou de frente a olhar para eles. Mas começa a chover e a Jennifer puxa-me para o lado deles, abrigados pela entrada da loja.
- Does your family know that your here? Do you send money?
- No. I dont send and they dont know that i´m a prostitute. But i´ve never been exploited. Nobody misstreat me. I have the like to live. I like to live.
Somos interrupidas pelas restantes mulheres do grupo que se aproximam e que falam uma língua que não sei identificar. Aproveito para fazer publicidade ao 1º de Maio.
- Yes, a gathering, a concentration of the workers and also the sex workers, for the rights of all the workers. I´m sure Irmãs Oblatas will tell about it - Todas aqui conhecem as Irmãs Oblatas, cujo centro fica nesta zona. São as Irmãs Oblatas, que oferecem cursos de integração às prostitutas e que já andam em rondas nestas ruas há muito tempo, que "batem esta zona". Daí que eu nunca cá tenha vindo antes. Aqui ninguém me conhece, ao contrário de outras zonas do mapa da prostituição de rua da cidade Lisboa, cujas zonas - Artilharia 1, Praça da Figueira, Martim Moniz, Cais do Sodré, Conde Redondo, Técnico - costumo "bater" nas rondas em que participo com o RedLight e a Umar (e as Panteras Rosa, cujas rondas neste momento estão desactivadas). Com as Irmãs nunca trabalhei. Por escolha, identifico-me mais com os projectos com que estou envolvida que com as Irmãs, cujo importante trabalho reconheço e respeito, mas que ideologicamente não se coaduna com as minhas próprias ideias - I will be there, if you wanna show up - a trocar sorrisos simpáticos, dou-lhes o meu contacto. Não peço o delas.

A aceitação é muito melhor do que estava à espera. Elas falam comigo, são até simpáticas, apesar do controlo apertado que fazem umas das outras.
Uma das entrevistas é feita com o tipo mesmo ali ao lado a ouvir a conversa [que me interessa a mim, não tenho nada a esconder, e até prefiro que todos saibam o que ando ali a fazer. Além disso, as perguntas são genéricas, contam-me o que quiserem, fazem sinal para mudar de pergunta quando não querem (ou não podem) responder].
Depois de abordar umas 5 ou 6 jovens - metade das quais me diz: "hoje não" ou "mais tarde" ou "não falo" - lá vou eu para o interior do Largo. Um pouco mais à frente estão mais trabalhadoras do sexo, mais velhas, portuguesas, algumas nitidamente toxicodependentes.
O que mais ouvi hoje foi "estou aqui, porque preciso de comer".
Passa um homem, um dali, com os olhos cheios de droga. Fica a olhar para mim, a ver o que ando a fazer. É óbvio que se vai meter comigo...o que é que vai sair daqui?
- Então, o estudo está a correr bem?
- Sim, até agora sim - respondo.

Saí de lá incolume. Ninguém me insultou. Ninguém me tentou assaltar. Ninguém foi agressivo. Muito pelo contrário. Toda a gente percebeu que estava ali a "aprender", que lhes fui pedir cumplicidade para perceber o mundo que elas habitam. Os das margens também têm coisas a dizer. Basta darmos-lhes essa possibilidade.

Afinal aquela zona não é o buraco (tão) obscuro que tinha pintado na minha cabeça. Quem lá vive, trabalha ou passa tempo (putas, chulos, traficantes de droga e residentes) é gente igual a mim.

E estar sempre preparada para o pior serve para viver grandes surpresas.

2 comentários:

ZedoT disse...

Não tinha ainda lido o relato completo. Falatava-me a parte da conversa. Ficou-me agora um questão:
não trabalhas com as irmãs Oblatas, mas vais falar com elas, certo? Ou não fazem elas parte do universo de gente que está ligado à prostituição? o próprio pudor com que falam (ou talvez não) deve ter o seu interesse. :P.
Ghana: Ashanti?
Depois quero perguntar-te uma cena sobre como vais tratar estas conversas? Estou aqui com umas inquietações metodológicas! hahahah :)

Falcao

Filipa Alvim disse...

Ah és tu Falcão ;)
sim, claro, não tenciono trabalhar com as Irmãs, mas irei evidentemente conversar com elas, como de resto com qualquer instituição que trabalhe as áreas em foco.
Se a Jennifer é ashanti, não sei. Espero ter essa e outras respostas no fim do trabalho, mas como vês, as conversas são controladas, eu própria sou controlada não apenas por mim e pelas minhas interlocutoras, mas também por quem me esteja a ver, ou mesmo a ouvir.
Quanto à forma com que vou tratar as conversas, ainda não sei. Para já, é este o tom, em forma de caderno de campo.